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sábado, 5 de julho de 2008

Antigamente (...)


As areias do tempo não podem ser paradas. Os anos avançam, quer o queiramos ou não… mas podemos recordar. O que se perdeu pode ainda resistir na nossa memória. Aquilo que ouvireis é imperfeito e fragmentado, no entanto, apreciai-o, pois, sem vós, nada disso existe. Dar-vos-ei agora uma memória que já foi esquecida, perdida na penumbra onírica que perdura por trás de nós.
Antes dos pais dos vossos avós terem nascido, e sim, até antes dos pais deles, surgiram os Cavaleiros do Dragão. Proteger e salvaguardar era a sua missão, e por milhares de anos conseguiram-no. A sua mestria em combate era inigualável, pois cada um deles tinha a força de dez homens. Eram imortais, excepto se atacados por espada ou veneno. Apenas para o Bem deveriam ser usados os seus poderes, e sob a sua tutela construíram-se cidades e torres erguidas da pedra viva. Enquanto conseguiram manter a paz, a terra florescida. Foi uma era dourada. Os Elfos eram nossos aliados, os Anões nossos amigos. A riqueza inundava as nossas cidades e os homens prosperavam. Mas… nada disto durou.
Morgriff olhou para baixo, silenciosamente. Uma tristeza infinita ressoava na sua voz.
Embora nenhum inimigo os pudesse destruir, não podiam precaver-se contra eles próprios. E, com o tempo, no pico do seu poderio, um rapaz, de seu nome Xassta, nasceu na província de Aquilad, que já não existe. Aos dez anos foi testado, como era da tradição, e descobriu-se que nele residia um grande poder. Os cavaleiros aceitaram-no como um dos seus.
Passou pelos seus treinos, ultrapassando os outros nas diferentes habilidades. Agraciado com uma inteligência enorme e um corpo robusto, depressa ocupou o seu lugar nas fileiras dos Cavaleiros. Alguns viam a sua ascensão súbita como algo perigoso e avisavam os outros, mas os Cavaleiros tinham-se tornado arrogantes por causa do seu poder e ignoraram os avisos. Enfim, nesse dia nasceu uma grande tristeza.
Aconteceu então que, logo após o seu treino, Xassta fez uma viagem desavisada com dois amigos. Voaram para norte, dia e noite, e acabaram por passar para o território dos Urgals, tolamente pensando que os seus novos poderes os protegiam. Então, num manto espesso de gelo, que não derretia nem durante o Verão, foram surpreendidos enquanto dormiam. Apesar de os seus amigos e os dragões terem sido assassinados e de ele próprio ter ficado gravemente ferido, Xassta chacinou os seus atacantes. Tragicamente, durante a batalha, uma flecha perdida perfurou o coração do seu dragão. Sem arte para o salvar, morreu nos seus braços. E assim se plantaram as sementes da loucura.
Morgriff apertou as mãos e olhou em seu redor muito devagar. Sombras tremiam no seu rosto gasto. As palavras que se seguiram vieram como a toada fúnebre de um concerto.
Sozinho, privado de grande parte das suas forças e já meio enlouquecido com a perda, Xassta vagueou sem esperança por aquela terra desgraçada, em busca da morte. Mas esta não veio ao seu encontro, embora investisse sem medo contra qualquer criatura viva. Em breve, Urgals e outros monstros fugiriam da sua forma de luta assombrada. Durante esse tempo, apercebeu-se de que os Cavaleiros iriam ceder-lhe um outro Dragão. Embalado neste pensamento, deu início a uma árdua viagem, a pé, de volta à Brumívium (floresta onde muita gente tinha medo de lá ir). O território, que tinha sobrevoado sem qualquer esforço no dorço dum dragão demorava agora meses a atravessar. Podia caçar com magia, mas passava frequentemente por lugares onde não se viam antes. Assim, quando os seus pés abandonaram finalmente as montanhas, estava à beira da morte. Um camponês encontrou-o caído na lama e convocou os Cavaleiros.
Inconsciente, foi levado para a base deles, onde o seu corpo foi curado. Dormiu durante quatro dias. Ao acordar, não deu sinais de delírio febril. Quando foi levado a conselho para o julgarem, Xassta exigiu um outro dragão. O desespero do seu pedido revelou o grau da sua demência, e o conselho viu-o tal como era. Vendo negada a sua esperança, Xassta, através do retorcido espelho da sua loucura, convenceu-se de que a culpa da morte dos dragões era dos Cavaleiros. Noite após noite, cismou nessa crença e congeminou um plano de vingança.
As palavras de Morgriff desceram de tom até começar a falar num sussurro hipnótico.
Encontrou um Cavaleiro mais compassivo, em quem as suas palavras traiçoeiras deram frutos. Desenvolvendo insistentemente raciocínios astutos, e com a ajuda de segredos obscuros que um Espectro lhe ensinara, inflamou o Cavaleiro contra os anciãos. Juntos, atraíram traiçoeiramente e depois mataram um ancião. Depois de o terrível acto ter sido cometido, Xassta virou-se contra o seu aliado, assassinando-o sem aviso. Os Cavaleiros encontraram-no, então, com sangue a pingar das suas mãos. Um grito rasgou os seus lábios e fugiu na noite. Estranhamente lúcido na sua loucura, não o conseguiram encontrar.
Durante anos, escondeu-se em terras de ninguém, como um animal em fuga, sempre atento a perseguições. A sua atrocidade não foi nunca esquecida, mas, ao fim de algum tempo, as buscas pararam. Então, graças a uma qualquer má sorte, conheceu um jovem Cavaleiro, Aran, forte de corpo, mas fraco de mente. Xassta convenceu Aran a deixar aberto um portão da cidade Névila, que hoje se chama Nielirian. Entrou por esse portão e roubou uma cria de dragão recém-nascida.
Ele e o seu novo discípulo esconderam-se num local maldito, onde os Cavaleiros não se atreviam a entrar. Ali, Aran iniciou-se numa pérfida aprendizagem, aprendendo segredos e magias proibidas, que nunca deveriam ter sido reveladas. Quando o seu treino terminou e o dragão de Xassta, Édinmentor, estava já crescido, Xassta revelou-se ao mundo, com Aran ao seu lado, Juntos, enfrentavam qualquer Cavaleiro que encontrassem. A cada matança, a sua força crescia. Doze dos Cavaleiros juntaram-se a Xassta, por desejo de poder e vingança contra factos que achavam estar errados. Esses doze, juntamente com Aran, tornaram-se os Treze Renegados. Os Cavaleiros não estavam preparados e foram derrubados no massacre. Também os elfos lutaram amargamente contra Xassta, mas foram derrotados e forçados a fugir para os seus locais secretos, donde não saíram mais.
Apenas Caspian, líder dos Cavaleiros, conseguiu resistir a Xassta e aos Renegados. Antigo e sábio, lutou para salvar o que pudesse e evitar que os restantes dragões caíssem nas mãos dos seus inimigos. Na última batalha, perante os portões de Caladmiron, Caspian derrotou Xassta, mas hesitou no golpe final. Xassta aproveitou o momento e golpeou-o de lado. Gravemente ferido, Caspian fugiu da Montanha Éutel, onde esperava conseguir recuperar as suas forças. Mas não estava destinado a acontecer, pois Xassta pontapeou Caspian nas virilhas. Com aquele golpe baixo, ganhou vantagem sobre Caspian e decepou-lhe a cabeça com um golpe de espada.
Então, sentindo um poder a percorre-lhe as veias, Xassta ungiu-se e fez-se rei de toda a cidade Thror.
E desde então tem sido sempre o nosso rei.

Livro: Eragon
Todos os nomes foram mudados.

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